sábado, 19 de setembro de 2009

ACORDO OU DESACORDO ORTOGRÁFICO?

Desde o momento em que se aprovou a nova reforma ortográfica entre os países de língua portuguesa que a polêmica se instaurou na mídia, nas instituições escolares e nas ruas. Como acontece em todos os processos de mudança, uns se posicionam contra e outros, a favor. No entanto, para se defender um dos pontos de vista, é necessário se conhecer um pouco da história dos acordos ortográficos anteriores entre Brasil e Portugal, a fim de se entender que o consenso nunca foi uma das características nessa tentativa de unificação das grafias do português.

A Linguística, como a ciência que estuda a linguagem humana, trouxe-nos o conhecimento das leis fonéticas. Ou melhor, com seus estudos iniciais no século XIX, foi possível observar que as línguas sofrem mudanças na forma como se pronunciam suas palavras; portanto haveria uma regularidade prevista para essas transformações. Isso permitiu que se estudasse a evolução da escrita das línguas com base científica. Tal investigação nos permitiu chegar à grafia etimológica, fundamentada na investigação da origem da palavra para explicar sua escrita num dado momento.

Essa perspectiva de estudo permitiu que, em 1904, com a publicação da obra “Ortografia Nacional” de Gonçalves Viana, começassem as discussões a respeito de uma regularização da escrita em Portugal. Antes disso, a escrita portuguesa não tinha regras definidas. Um exemplo disso é a representação da nasalidade, que poderia ser feita com a letra “m” e “n” após a vogal ou com til sobre ela. Num único texto, seria possível encontrar as seguintes grafias: “gemte” ou “gente”; ou ainda “grãde” (grande). Sendo assim, não havia a relação fonética com a consoante posterior, como teríamos mais tarde na regra aprendida nos primeiros anos da alfabetização: antes de “p” e “b” só se usa “m”, ou seja, pelo fato de a consoante nasal ser bilabial (produzida com o contato dos lábios), seu emprego só se dá diante de outra bilabial.

No Brasil, essa discussão chegou em 1907. A Academia Brasileira de Letras lançou a primeira proposta de uma grafia simplificada da língua portuguesa, a fim de regularizar suas publicações oficiais. Com isso, fez-se a organização de um vocabulário ortográfico, contendo mudanças que passariam a caracterizar o português brasileiro, uma vez que se diferenciava, em vários pontos, do sistema ortográfico de Portugal.

Foi, precisamente, no ano de 1911 que iniciou o desacordo entre Brasil e Portugal quanto a essa tentativa de uniformização da língua portuguesa. Uma decisão unilateral dos portugueses oficializou as mudanças sugeridas naquela obra de Gonçalves Viana. Tratado ainda como colônia, o Brasil não teve participação nos debates, tomando apenas conhecimento da reforma. Esse fato levou a Academia Brasileira a reexaminar as modificações propostas anteriormente e a oficializar tais regras de simplificação em 1929.

Em 1931, com o objetivo de corrigir essas posições divergentes, os dois países resolveram fazer o primeiro acordo ortográfico, adotando-se o sistema português de 1911. Daí, tornou-se obrigatório o uso da nova ortografia nas repartições públicas e nos estabelecimentos de ensino. No entanto, nos anos seguintes, algumas modificações a esse acordo foram propostas pelos dois países, para que atendessem às suas respectivas características da fala e, consequentemente, sua representação na escrita. Isto é: a uniformização propriamente dita ainda não se efetivara.

Surgiram, então, os acordos de 1943 e de 1945, que buscaram outras reformulações no sistema ortográfico dos dois países. Na prática, Portugal implementou os ajustes do segundo, e o Brasil, o do primeiro. E, ainda com o propósito de unificação, novas tentativas foram feitas em 1967, 1971 e 1973, buscando a incorporação de outras regulamentações do sistema ortográfico, mediante a retirada de algumas regras de acentuação. Mais uma vez, os acordos terminaram em fracasso.

Em 1986, no Rio de Janeiro, representantes portugueses, brasileiros e lusoafricanos (exceto Guiné-Bissau) tentaram uma unificação mais ampla entre as grafias da língua portuguesa. Para tanto, propuseram-se uma simplificação do sistema de acentuação gráfica e o fim dos acentos nas palavras paroxítonas e proparoxítonas. Considerou-se o projeto muito radical e, diante da reação polêmica contra ele, principalmente em Portugal, foi rejeitado, para evitar, como dito na época, a “desagregação do idioma”.

Somente em 1990, em Lisboa, os dois países chegaram a uma concordância quanto à ortografia comum. Com alterações menos profundas, a nova reforma ortográfica da língua portuguesa ampliou a área de abrangência, incorporando os outros países do mundo que têm o português como língua oficial (Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, São Tomé e Príncipe), passando a valer, a partir de 2009 (portanto após 18 anos de debates), para os documentos oficiais e a mídia. No ensino público, inicia seu processo de implementação em 2010 e, até 2012, as novas regras deverão ser adotadas para todo o ciclo escolar.

As modificações implementadas na grafia portuguesa, dessa vez, objetivam uma delimitação mais nítida das diferenças entre os usuários da língua portuguesa, privilegiando as pronúncias portuguesa e brasileira. Essas particularidades justificam, no atual acordo, a existência de dupla grafia para algumas palavras, como, por exemplo, “bebê”, “cômodo”, “pônei” e “fato” (no Brasil) ou “bebé”, “cómodo”, “pónei” e “facto” (em Portugal).

Como podemos perceber, os dois países vêm fazendo reformulações ortográficas ao longo de todos esses anos, com o objetivo de se chegar a uma unificação. O consenso, porém, ainda não existe. Várias são as manifestações de concordância e discordância a respeito da reforma. Os que se colocam a favor afirmam que, agora, os países de língua portuguesa dispõem de um instrumento de comunicação muito mais próximo, promovendo a formação de um bloco linguístico forte capaz de garantir a unidade da língua portuguesa. Já os que se posicionam contra ressaltam os inúmeros problemas da reforma ortográfica, que, devido a exceções descabidas, principalmente no uso do hífen, trarão mais dificuldades para o aprendizado do português e para sua divulgação, uma vez que todas as publicações futuras deverão se adaptar ao novo acordo, gerando um custo muito grande para o setor editorial em função de mudanças pouco profundas. Como se vê, teremos, a seguir, muitas cenas das próximas polêmicas...

(Coluna “No quintal das palavras”. Artigo publicado no Lagos Jornal, Ano V, nº 440, Cabo Frio, quinta-feira, 28-5-2009, p.4)

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